Inspirado nos relatos de Marinalva Fontana
Revisado por Cátia Raboni
A casa em
que eles moravam ficava em um bairro da grande metrópole paulistana, chamado
São João Clímaco. Ali, se conservavam residências com meio século ou mais de
existência, que podia ser percebida pela arquitetura não mais utilizada em
novas construções. Muitas das casas do largo eram assobradadas que se
misturavam alguns estabelecimentos nos armazéns inferiores. A vasta praça
arborizada com muitos metros quadrados para o passeio público marcava um meio
entre a geografia que figurava desníveis de provocantes ladeiras. A Igreja era
construída em arquitetura que lembrava a tranquilidade de uma cidadezinha do
interior, pintada de cores neutras. Uma estrada urbanizada do tempo do Império agora
funcionava como uma movimentada avenida que cortava o bairro. Todo esse desenho
de elementos fazia com que as reminiscências do passado estivessem presentes no
meio da degradação do entorno do local. Muitas marcas da época da sua fundação
haviam sido apagadas, mas ainda resistiam uma série de sinais indeléveis das
décadas anteriores.
O imóvel que habitavam fazia parte desse
contexto, totalmente inserido nesse conjunto de casas mais antigas. Era uma casa
simplesmente enorme, característica presente das moradias de outrora. Na parte
da frente, havia um armazém para uso comercial, com um estabelecimento que
fechava pouco antes do fim da tarde. Logo ao lado da porta de aço, havia a
porta de entrada de um assobradado, e do outro lado, o portão que dava acesso
para a casa onde moravam. Um corredor a céu aberto ladeava o velho armazém e conduzia
para o extenso quintal, que terminava em um descampado íngreme que segurava uma
árvore pendente rumo ao muro que cercava o terreno. De tão grande, a casa ainda
possuía uma espécie de porão, mas que ainda poderia ser usado como uma segunda
residência. Fazendo divisa de parede, apenas a casa mais acima de uma vizinha
que ali morava com os dois filhos ainda crianças.
Foi em uma
noite comum que eles ouviram o barulho pela primeira vez. Celinha e Marcos
haviam trabalhado o dia inteiro, chegando de volta ao lar tarde da noite. Fazia
um pouco de frio. Havia chovido fracamente e o cheiro da terra molhada inundava
suas respirações. Demoraram pouco mais que o normal para se retirarem para o
quarto, apagando as luzes e esperando o sono chegar. Celinha, que já morava na
casa antes de se casar com Marcos, sempre teve medo do escuro, e muitas vezes
dormia com a casa toda acesa, receosa de apagar as lâmpadas e subir a escada
rumo ao andar superior com a parte térrea no breu. Com a companhia do esposo – um
descrente em qualquer tipo de histórias sobrenaturais – sentia – se mais
confortável ao desligar os interruptores. Naquela noite, deitados no escuro,
esticaram braços e pernas cansados, pensando no próximo dia de trabalho que
viria pela frente. E em meio ao silêncio noturno, foi então que tudo começou. Tec,
tec, tec. Tec, tec, tec, tec, tec, tec, tec, tec... Parecia um barulho dentro do quarto,
ou muito próximo. O coração de Celinha acelerou. Ela abriu os olhos, levantou a
cabeça por impulso e chamou pelo marido.
_ Marcos,
você ouviu isso?
_O quê?
_Esse
barulho!
_Que
barulho?
_Esse
barulho!
Tec, tec, tec. Tec, tec, tec, tec, tec, tec, tec,
tec...
_Não tá
ouvindo Marcos? Não é possível!
_Ah, ouvi
sim, mas não é nada! Devem ser as crianças da Josélia!
_Mas já
passa da meia noite! Os filhos dela devem estar dormindo! É muito estranho!
_Ah, vamos
dormir, no mínimo deve ser um dos filhos dela tacando bolinha de gude no chão! Deixa
pra lá!
Mas Celinha
não conseguiu dormir muito bem. Entre o estado de dormindo e acordado, passou a
noite toda tendo sonhos estranhos e acordou toda suada. A blusa do seu pijama
estava encharcada de suor frio e uma sensação estranha invadiu seu corpo quando
se lembrou de parte de seus sonhos durante o café da manhã. Lembrou que andava
por um terreno descampado, com algumas árvores, e ouvia um som distante.
Parecia música, mas ela não sabia porque uma angústia tomou conta do seu peito.
_Marcos,
você não achou estranho aquele barulho ontem à noite?
_Ah, para
com isso! Com certeza eram as crianças da Josélia! Depois você conversa com
ela!
Saíram para
trabalhar como de costume. Celinha passou o dia com a lembrança do tal barulho,
que parecia ser de bolinhas de gude sendo arremessadas ao chão. Também pensava
no sonho que havia tido, do qual não conseguia se lembrar por inteiro. Do som
distante que parecia música, mas que ela não conseguia discernir. E mais
incômodo ainda, do pijama todo molhado de suor frio, coisa que nunca lhe
acontecia.
Após muitas
horas na rua, por mais um dia o casal voltou para casa e foi descansar. Celinha
percebeu que Marcos, de tão cansado, dormiu bem rápido, deixando – a sozinha
naquela escuridão. A lua cheia fazia com que entrasse uma pequena claridade no
quarto, tornando o ambiente mais amedrontador para Celinha que, abrindo os
olhos, conseguia distinguir com deformidades as silhuetas dos móveis de seu
quarto. Foi quando começou a ouvir. Tec, tec, tec. Tec, tec, tec, tec, tec,
tec, tec, tec...
Celinha
ficou apavorada. Realmente, Marcos poderia ter razão. Podia mesmo ser barulho
da casa vizinha, a única que fazia divisa de parede com a sua casa. Mas às
vezes parecia que o som vinha do teto! E algo naquele som a angustiava. Também
era estranho o horário, sempre depois da meia noite. Por quê eles nunca tinham
ouvido aquele som durante o dia, ou mesmo à noite, só que mais cedo?
Os barulhos
passaram a aumentar, noite após noite. Agora também era possível ouvir
nitidamente móveis sendo arrastados, como se fosse uma grande faxina ou mudança.
A duração dos sons levava horas, dos móveis juntamente com o barulho das
"bolinhas de gude" sendo jogadas pouco a pouco, uma a uma, até serem
jogadas todas ao mesmo tempo. Celinha, que já acumulava muito medo de
assombração, entrava quase que em pânico por conta disso. Passou a ter
pesadelos cada vez mais densos, e a acordar toda manhã com o pijama suado.
Marcos também ouviu todos os sons, mas tinha certeza de que tratava – se da
vizinha e seus filhos fazendo barulho fora de hora.
Finalmente Celinha conseguiu
encontrar a vizinha, ambas voltando da feira, em uma manhã de sábado. Fazia
tempo que não se viam, visto que as oportunidades eram escassas por conta dos
horários de trabalho de cada uma. Conversaram simpaticamente sobre o trivial e
amenidades do dia a dia, até Celinha tocar no assunto que tanto esperava.
_Josélia,
seus meninos tem brincado de noite? Assim, bem tarde, mais ou menos depois da
meia noite? Eles brincam de jogar bolinha de gude?
_Não, eu
coloco eles na cama perto das dez horas. Às vezes eles assistem um pouco de TV,
mas eu não deixo depois das onze não. Eu acordo cedo pra trabalhar e não deixo
eles ficarem de bobagem fora de hora. E eles não brincam de bolinha de gude
não. Mas... Por quê você tá me perguntando isso?
Celinha
contou para a vizinha sobre o que acontecia na sua casa. Josélia ouviu seu
relato com bastante atenção. Quando Celinha terminou, sua vizinha começou a
falar algo que a desconcertou.
_Faz algum
tempo que ouço todos esses barulhos que você descreveu, no mesmo horário.
Também morro de medo, pois sei que você não tem crianças em casa, e vejo meus
dois filhos dormindo. Uma vez eles acordaram por causa dos sons e ficaram bastante
assustados. Eu pensava que você pelo menos estava arrastando os móveis. Mas
agora... A história ficou mais estranha ainda. Nossas casas dividem parede uma
com a outra, e com mais ninguém.
Terminada a
conversa, cada uma voltou para sua casa desconcertada. Sabiam que não havia
mais chance de uma explicação plausível, racional e lógica. Aquela conversa
havia esvaziado o coração das duas da esperança de uma suposta normalidade
naqueles sons.
Durante o
almoço, Celinha contou para Marcos sobre a conversa que teve com a vizinha. Apesar
de cético, Marcos ficou um tanto quanto incomodado com as informações, apesar
de não demonstrar muito dessa sensação para sua esposa. Não queria assustar e nem
preocupar ainda mais a mente de Celinha, além de não querer admitir o seu
próprio medo frente ao desconhecido.
Um dia, um
amigo do casal pernoitou na casa. Celinha o avisou sobre o fenômeno, mas ele
deu risada. Não era exatamente uma pessoa cética, mas foi dormir no quarto ao
lado sem preocupações com o assunto. Quando todos deitaram e as luzes se
apagaram, o silêncio tomou conta da casa. Mas após a meia noite foi quebrado
pelo som das bolinhas. Tec, tec, tec. Tec, tec, tec, tec,
tec, tec, tec, tec... Depois,
passou a ouvir várias bolinhas sendo arremessadas, com se o som viesse do teto.
Além dos pesados móveis sendo arrastados, como se riscados no chão, em alto e
bom som. Foi então que o amigo do casal ficou impressionado frente ao
inexplicável, com o corpo tenso até adormecer. No dia seguinte, reconheceu
junto aos anfitriões que realmente alguma coisa estranha acontecia por ali. Caso
realmente não fosse a vizinha a produtora dos sons noturnos, então era algo
assustador pela nitidez dos barulhos e insistência e força dos mesmos.
Noite após
noite Celinha sonhava coisas estranhas quando dormia ouvindo aqueles sons.
Acordava suada, e passou a ficar mais nervosa do que de costume. Mais de uma
vez sonhou com o descampado, e o som distante que ouvia, sentindo – se muito
sozinha. Em uma dessas noites, apareceu uma mulher em seus sonhos. Negra, alta,
com uns 50 anos de idade, com um lenço na cabeça. Falava com ela, mas não
entendia o que. Ou não lembrava ao acordar, não sabia dizer.
Já bastante
incomodada, no limite do cansaço e do medo, resolveu procurar sobre o passado
da casa. Era difícil conseguir informações. Não havia muita coisa para
pesquisar, somente comentários de pessoas mais antigas do bairro. Foi então que
soube de uma mulher que morava no bairro há 60 anos e frequentava a Igreja do
largo, que remontava as origens do século XIX. Resolveu ir à missa de domingo, para ver se
encontrava com ela e conseguia descobrir algo que ajudasse.
Maria Inês
era o nome dela. Tinha se mudado para o bairro ainda criança, junto com os pais
e os irmãos, a família toda vinda do interior, lá de Sertãozinho. Falava com
firmeza e parecia muito lúcida. Sentaram as duas em um banco em frente à
Igreja. Celinha perguntou sobre a história do bairro, da rua em que morava ali
perto, da praça na frente de sua casa. As palavras fluíam incansavelmente da
boca daquela senhora, que começou a desconfiar dos motivos de Celinha, até que finalmente
esta lhe relatou o que estava vivendo na sua casa e dos sonhos que teve. Quando
ouviu sobre a negra de lenço amarrado no cabelo, do descampado e do som
indefinido, Maria Inês começou a perder a cor. Foi ficando pálida, com os olhos
parados, fixos em Celinha.
_Minha
filha, vou te contar a história do passado desse lugar, que deve ajudar você em
alguma coisa. Quando mudei para cá, há cerca de 60 anos atrás, todo esse
terreno atrás da Igreja era um descampado. Eu vi a construção dessa Igreja, que
substituiu a antiga capela dos tempos dos mil e oitocentos, de quando aqui
ainda era uma fazenda, que pouco a pouco foi loteada. Depois, das primeiras
casas na rua onde você mora, inclusive da sua. Lembro como se fosse hoje da
paisagem toda daqui, e de todas as mudanças que ocorreram. Ali onde fica esse
terreno da praça, e também da sua casa, era um local usado por pessoas
praticantes do Candomblé, que sofriam muito preconceito naquela época, muito
pior do que ainda sofrem hoje. As pessoas eram muito mais ignorantes e assustadas
do que são hoje. Não gostavam daqueles rituais. Eu mesma, por influência da
minha família, quando criança morria de medo daquelas pessoas e de seus tambores.
Hoje eu entendo que era só uma religião inofensiva. Mas naquela época, dos anos
40, tudo era bem diferente. Nem televisão o povo tinha, então criava muito mais
minhoca na cabeça. Havia uma negra chamada Zita que diziam ser a liderança
daquele povo. Começaram então a sofrer muitas ameaças, até que resolveram sair
daqui, antes que as palavras de ódio virassem marcas no corpo. Hoje, quando eu me
lembro daquelas pessoas indo embora, com muita tristeza no olhar, sinto remorso
e culpa, apesar de na época eu ainda ser uma criança. Lembro com vergonha
daquilo. A tal da Zita, sempre com um lenço amarrado na cabeça, passou por nós
aqui na Igreja e disse baixinho que voltaria, nem que fosse depois de morta.
Aquilo me arrepiou inteirinha. Ela falava baixo, mas tinha um pouco de ódio na
voz, pela injustiça que estava sofrendo.
_Nossa,
dona Inês, que história terrível!
_E tem mais
minha filha. Eu não queria te contar, mas não tem outro jeito: a Zita chegou
morar na casa onde você mora.
O rosto de Celinha
perdeu a cor dessa vez. Chegou a gaguejar.
_Na, na, na
minha casa?
_Sim minha
filha, na sua casa. Na parte mesmo em que você diz que mora, na casa dos
fundos, na parte de baixo.
_Mas, mas,
o que eu faço?
_Não sei.
Faz muito tempo que não falo disso com ninguém. Mas agora que você me contou
essas coisas... As lembranças daquele tempo vieram vivas na minha cabeça.
_A senhora
me ajuda? Vamos até a minha casa, eu levo a senhora!
_Não sei...
Ainda tenho medo quando me lembro da injustiça que cometemos contra pessoas inocentes...
_Por favor,
dona Maria Inês, por favor!
_Está bem.
Eu vou. Amanhã, está bem? De tarde.
_Está
ótimo! Muito obrigada, muito obrigada!
Celinha
voltou para casa mais assustada do que nunca. Ao mesmo tempo, começou a ter
esperança de resolver seu problema. Passou voando pelo corredor lateral, já
escuro, até chegar ao quintal. Correu para dentro procurando seu marido. Marcos
percebeu que ela estava diferente e perguntou o que havia acontecido. Ouviu
atentamente tudo o que ela tinha para contar, mas não quis falar muito sobre o
assunto. Na verdade, havia ficado mais assustado também. Naquela noite, eles dormiram
abraçados. Ambos sentiam desconforto por aquela situação toda. As bolinhas e os
móveis continuaram a fazer os barulhos de sempre, depois da meia noite. Sem
tréguas.
No dia
seguinte, Celinha conseguiu sair mais cedo do trabalho para buscar dona Maria
Inês. Logo que entrou no quintal, a senhora começou a ficar incomodada. Foi direto
para a parte de terra, onde estava a árvore. Ali desceu com dificuldade e
cuidado rumo à parte íngreme. Disse para Celinha que aquela árvore estava ali
desde os tempos que ela havia descrito. Agarrou com as mãos o seu tronco, como
se conseguisse assim alguma conexão com o passado.
Quando
passou em frente ao porão, pediu para entrar. Celinha foi buscar a chave e
abriu a porta, que rangeu agudamente. Lá dentro, algumas peças velhas
amontoadas entre eletrodomésticos, panelas, uma cadeira descascada e uma
mesinha de ferro. Maria Inês entrou sem falar nada. Olhou para todos os cantos,
como se procurasse algo. Passaram – se alguns minutos assim, as duas lá dentro,
respirando aquele cheiro de lugar fechado, meio mofado. A claridade pouco
entrava ali, pelo basculante pequeno de vidro canelado, e agora pela porta
aberta, que recebia luz indireta naquele ponto da casa.
Maria Inês
puxou a mesinha de ferro, que não tinha mais firmeza em um dos seus pés. Atrás
da mesinha, na parede, uma parte chamuscada parecia ter algumas letras escritas
à faca. Nas letras, era possível distinguir a letra “Z” junto a outras letras indefinidas,
se é que eram letras. Celinha ficou em estado de choque, misturado com um medo
terrível, enquanto Maria Inês parecia decidida a averiguar até o fim o que mais
havia naquele porão. No canto mais escuro do ambiente, Maria Inês tropeçou em
um velho tapete enrolado, que ambas ainda nem haviam visto. Embaixo dele, uma
espécie de pequeno alçapão, quase imperceptível naquela parte mais sombria.
Celinha foi correndo pegar uma faca grande de cortar carne, e com esforço
conseguiu mover a tampa. Ali embaixo, bem guardadinhas, dentro de um velho
lenço bastante usado, uma coleção de bolinhas de gude.
Estupefatas,
resolveram pegar o lenço e as bolinhas com uma sacola plástica e retirar aquilo
da casa. Maria Inês disse que sabia o que fazer. Pediu a Celinha uma pá,
colher, qualquer instrumento que servisse para cavar. Foi então que saíram rumo
a grande praça, que ficava na frente da casa de Celinha. Ali, cavaram um buraco
e enterraram o lenço com as bolinhas o mais fundo possível.
_Minha
filha, eu não tenho explicação para nada disso não. Só sei que é melhor esses
objetos ficarem aqui na terra da praça, do que na sua casa. Não sei porque.
Deixa aqui, volta pra sua casa e espera para ver o que acontece.
Despediram
– se com um abraço. Celinha agradeceu muito pela solidariedade de Maria Inês.
Naquela
noite, Celinha contou a Marcos o que havia acontecido. Como sempre, ele ouviu
com atenção, mas não demonstrou seus medos. Ficou arrepiado quando a mulher
contou do lenço e das bolinhas, e do tal do alçapão no cantinho mais escuro do
porão. Simplesmente considerou tudo aquilo muito estranho. Na verdade, não
queria nem pensar no que significava tudo aquilo, preferia fazer – se acreditar
que toda aquela história não passava de uma série de coincidências pitorescas.
Como
de costume, foram deitar e apagaram todas as luzes. Dessa vez, foi Marcos que
demorou a dormir, prestando atenção no som do silêncio da noite. Quando
adormeceu, sonhou com uma senhora negra, de uns cinquenta anos de idade. Vinha
em sua direção sorrindo, estendendo uma das mãos que segurava um lenço cheio de
bolinhas de gude dentro.
Acordou
suado, no meio da madrugada, quase gritando. Prestou atenção para ver se ouvia
algum daqueles barulhos, mas não havia o menor sinal deles. Subitamente, teve
vontade de ir até o portão e olhar a rua. Desceu a
escada, saiu da casa, atravessou o quintal escuro. Tremia de medo, nem sabia
porque fazia aquilo. Passou por todo aquele corredor lateral e chegou ao portão.Reparou
que havia um pouco de neblina no horizonte, e tremeu mais uma vez, de frio,
medo e ansiedade. Não sabia do que.
Subitamente, avistou ao longe, na praça, um movimento. Era uma senhora com um
lenço amarrado na cabeça. Sorrindo, chacoalhava algo entre as mãos. Um arrepio
lhe subiu a espinha. Ficou paralisado de medo, com a boca entreaberta, sem
conseguir uma reação. Quando finalmente conseguiu se mexer, saiu correndo de
volta à casa, fechou a porta com todas as fechaduras disponíveis e subiu a
escada correndo, nem sentia as pernas. Quando entrou no quarto, acendeu a luz,
acordando Celinha com todo aquele alvoroço.
_Que
que foi, o que é que aconteceu?
Marcos
nem conseguiu responder. Primeiro deitou na cama, se abraçou à esposa, e só
depois de um minuto conseguiu começar a falar. Contou o ocorrido, ainda cheio
de medo e pavor. No dia seguinte, combinaram de procurar a Dona Maria Inês.
Consideraram que era melhor procurar mais explicações sobre tudo aquilo, por
mais que na verdade achassem que nada ali era racional.
Quando
encontraram com a senhora, contaram o que havia acontecido desde então. Foi ela
que teve a ideia de investigar sobre o destino de Zita. Começou a perguntar
para outras pessoas antigas do bairro se sabiam do seu paradeiro após a sua
saída dali. Após umas duas semanas de investigação, Inês conversou com uma
senhora chamada Edith, que era remanescente do grupo religioso de Zita. Edith
contou que a mesma havia se mudado para outra região, e nunca mais tinha ouvido
falar dela. Forneceu um papelzinho velho, todo amarelado, com um endereço na
Zona Leste da cidade.
Partiram
então em uma missão investigativa sobre a vida de Zita. Foram de carro e
munidos de um guia até o endereço escrito a lápis no papelzinho, já quase
apagado. Encontraram uma casinha velha, descascada, sem pintura há muito tempo.
A cor amarelada já cedia lugar há muito tempo à fuligem acumulada, além das
águas escorridas do telhado de telhas antigas. Na ausência de campainha,
bateram palmas para chamar quem quer que fosse. A porta da casa ficava após um
recuo, depois de um portãozinho baixo. Uma pequena escada conduzia a um pequeno
hall. Vagarosamente, com um longo rangido,a porta foi aberta por um senhor de
cabelos brancos e crespos. De camisa branca, com botões abertos na parte de
cima, encarou o pequeno grupo de três pessoas paradas na frente de sua casa.
_Boa
tarde! Por favor, o senhor conhece a Dona Zita? - perguntou Dona aria Inês.
_Quem
quer saber? – respondeu com voz firme o homem que segurava a porta.
_Meu
nome é Maria Inês. Eu conheci Dona Zita há mais de sessenta anos atrás, quando
ela morava no meu bairro, perto da Estrada das Lágrimas.
_Você
era amiga dela? – rebateu o homem da voz firme
_Não...
Mas eu me lembro de quando ela foi embora... Eu queria saber dela...
_Vão
embora!
Já
ia fechando a porta quando Celinha gritou.
_Pelo
amor de Deus, eu moro na casa onde a Zita morava e encontrei o lenço de cabelo
dela no porão junto com um monte de bolinha junto! Não consigo mais dormir por
causa dos barulhos sem explicação de noite na minha casa e meu marido viu de
madrugada uma senhora de lenço na cabeça chacoalhando bolinhas de gude na
frente da nossa casa! Por favor, viemos pedir ajuda!
Quando
ouviu o apelo de Celinha, o homem parou de fechar a porta, que estava quase
encostando no batente. Com apenas uma fresta para visualizar o seu rosto, o
grupo em silêncio aguardava uma resposta. Foi então que o homem abriu a porta
novamente, desceu a pequena escadinha, com uma expressão taciturna que não se
alterava. Abriu o portão e convidou – os para entrar.
Sentaram
todos no pequeno jogo de sofá, na sala que parecia parada no tempo. No alto da
parede, acima da porta no lado de dentro, uma figura impressa de um preto velho
segurando uma viola caipira. Conforme
conversaram, o dono da casa se apresentou como José, filho de Zita. Contou que
a mãe se mudara para aquele bairro e ali viveu por muitos anos, até morrer, há uns
vinte anos atrás. Nunca se esqueceu da perseguição que havia sofrido.
_E
onde é que ela está enterrada? – perguntou Marcos
_No
Cemitério da Vila Formosa. Mas como já passou o tempo do sepultamento, os
restos dela foram removidos para o ossuário.
Celinha
perguntou se José tinha uma foto da mãe. Ele buscou uma foto com as bordas quebradiças,
colocada em porta retrato. Era uma foto de Zita ainda jovem, sorrindo. Quando
observaram sua imagem, ninguém ficou indiferente. Todos sentiram algum tipo de
emoção. Celinha reconheceu na hora a mulher que apareceu nos seus sonhos.
Marcos sentiu um aperto no coração, pois sabia que aquela senhora que apareceu
na praça naquela madrugada, só podia ser ela. E Maria Inês se lembrou de uma
época distante, de sua infância, quando tudo era diferente.
_O
senhor tem o endereço do túmulo dela? Quero ir até lá, pedir perdão pelo
passado, mesmo sem ter culpa de nada. Quero pedir perdão pela minha família e
pelos outros habitantes do bairro.
_Se
vocês tiverem tempo, o cemitério fica a algumas quadras daqui. É uma caminhada,
mas é possível ir a pé. Faz tempo que não visito o túmulo de minha mãe.
_Eu
quero ir! – disse Marcos.
Fazia
uma tarde com tempo ameno, sem ameaça de chuva, mas mesmo assim Celinha e
Marcos resolveram ir de carro, temendo cansar os dois idosos na caminhada.
Chegaram
então no maior cemitério da América Latina. Aquele imenso terreno, com muitos quilômetros
quadrados de extensão, fazia qualquer um se perder facilmente sem conhecer o
local ou soubesse as indicações corretas. Na entrada, Marcos comprou um maço de
flores, e Maria Inês outro. Celinha comprou uma rosa vermelha, ainda por
desabrochar completamente. Caminharam rumo ao ossuário, conforme as orientações
de José. Passaram por um grande paredão caiado, com incontáveis nichos para
restos mortais. Alguns abandonados, outros recentemente visitados. Não raro,
muitos desses túmulos verticais traziam fotos do defunto ocupante daquele pequeno
espaço. E após uma caminhada considerável, chegaram ao nicho com o nome que
procuravam.
Zita de Souza Gomes
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_Nossa,
ela morreu bastante idosa! – exclamou Celinha com espontaneidade.
_Minha
mãe viveu bastante. E nunca desanimou com aquilo que acreditava. Manteve até o
fim da sua vida um terreiro aqui por perto. Ah, que saudade dela... E colocou a
mão por sobre a lápide que trazia a mesma foto que havia mostrado no porta
retrato, emoldurada com bronze e gravada com tom de sépia na porcelana.
Maria
Inês se aproximou, carregando o maço de flores na mão e começou a falar.
_Zita,
eu vim até aqui te pedir perdão por tudo o que aconteceu no passado. Tudo o que
foi feito contra você e sua religião foi errado. Minha família era muito
ignorante, e venho pedir perdão em nome deles, que também já morreram. Peço
perdão também por outras pessoas da comunidade, que também te ameaçaram. Ofereço
estas flores, com muita humildade, para simbolizar meu pedido de perdão. Eu
imploro que aceite. E desejo do fundo do meu coração que você descanse em paz,
eternamente.
_Dona
Zita, meu nome é Marcos e eu moro na casa onde você morava. Nunca acreditei em
nada fora desse mundo, mas não sei o que está acontecendo. Trouxe essas flores
para enfeitar seu túmulo e também desejo, se existir vida além dessa vida, que
a senhora tenha muita paz.
_Dona
Zita, aceite essa rosa – Celinha enroscou o cabo da rosa na moldura da foto
tumular. Aceite essa rosa que é de coração. Desejo que a senhora fique em paz,
esteja onde estiver.
_Mãe,
essas pessoas vieram aqui para desejar que a senhora fique em paz eterna, com
muita luz. Fica em paz, tá bom? É seu filho que pede. Descansa em paz.
Ficaram
ali por alguns minutos, contemplando a lápide, a foto e as flores. Saíram como
que combinado, com um simples olhar trocado entre os presentes. Eles caminharam
em silêncio rumo ao portão do cemitério, que possuía um movimento um tanto
quanto intenso, considerando que se tratava de um cemitério. De tão grande,
nunca ficava sem pessoas andando entre os túmulos. Era um entra e sai de gente,
procurando túmulos, carregando flores, vasos e velas. Além disso, o cemitério
era usado até como área de lazer. Não era difícil encontrar senhoras fazendo
caminhada e crianças andando de bicicleta. A parte dos túmulos no chão era toda
de terra. Os túmulos eram reconhecidos pelos montes de terra elevada
acompanhados de placas de mármore branco com nomes escritos em preto. Fazendo
parte do conjunto, uma miniatura de capelinha, também branca, para abrigo de
velas.
Os
três que vieram de longe para aquela busca sentiam um grande alívio. Celinha e
Marcos sentiam que seus problemas em casa teriam fim para sempre. Maria Inês
pensava que havia feito a coisa certa, mesmo sem ter certeza absoluta de que
foi ouvida. José achava que a justiça finalmente tinha acontecido, mesmo que
tardiamente e de uma forma absolutamente torta.
Enquanto
caminhavam começaram a conversar, já mais descontraídos e sem aquele clima
cerimonioso de minutos atrás. José começou a contar como a mãe havia fundado um
terreiro ali perto, que conduziu até quase o dia da sua morte, que chegou
enquanto ela dormia na sua própria cama. Uma manhã, ele tentou acordar a mãe
que já estava gelada. Outra senhora, amiga dela, ainda mantinha o terreiro em
funcionamento.
Foi
assim que Celinha perdeu o olhar por um instante na extensa paisagem do
cemitério. Não conseguia parar de pensar em tudo o que havia vivido. No barulho
das bolinhas, nas histórias contadas por Maria Inês, dos objetos no porão da
sua casa, naquela procura pelo paradeiro de Zita, até chegar naquele cemitério
horrível. Ela chegava a se perguntar na veracidade daquela história fantástica.
Às vezes parecia que tudo era parte de um sonho. Mas no momento seguinte, se
perguntava não estar em um papel ridículo, atrás de histórias tão sem
explicação. Algumas covas abandonadas, e ora abertas, impressionaram Celinha. E
entre essas covas abandonadas, avistou uma figura que reconheceu na hora. Era
Zita, sorrindo e jogando as bolinhas na terra. Na sua boca, que se mexia,
parecia caber a palavra: “Obrigada”.