quarta-feira, 18 de julho de 2012

Encontros (Conto)


Encontros

“O sono da razão produz monstros”

Francisco Goya y Lucientes

Ela não vivia bem naquele isolamento, nas horas severas que estreitavam sua sanidade. Naquela tarde, Diacyra pensava no quão terrível era a sua vida em meio a tantas outras tardes solitárias, sem ouvir qualquer voz humana durante horas. Acabou por desenvolver o hábito de olhar – se no espelho várias vezes ao dia, arrumando o cabelo comprido e negro, que de tão liso escorria pelo seu corpo adolescente. Com freqüência, seus olhos buscavam na paisagem imagens que seu cérebro não definia como existentes, estranhamente entre o sonho e o pesadelo que repercutia em desespero quando estava sozinha. Andava perturbada, não sabia explicar a si mesma o motivo exato daquela aflição interminável que não conseguia expressar com palavras. Pensava muito no tempo, ou há quanto tempo que a solidão daquelas paragens a incomodava, ou ainda se realmente existia vida sem solidão. Seus pensamentos vagavam enquanto o sol queimava seu rosto, ou enquanto a lua refrescava suas mãos que mexiam – se involuntariamente.
Habitava a zona rural de um município perdido em uma divisa de Estados, lugar que era sua casa, sua terra natal, e ao mesmo tempo sua agonia. Morava em um sítio um tanto quanto isolado, na companhia do seu pai e da sua mãe. Não existiam cercas ou muros, promovendo uma situação em que os elementos naturais demarcavam os limites da propriedade. A vegetação era abundante e generosa, o que não agradava Diacyra. Muitas árvores próximas a casa formavam um desenho estranho, mesmo considerando sua beleza natural. Quanto mais densa estivesse a folhagem, mais inquietação sofria a moça. Vizinhos próximos não existiam, sendo necessária uma boa caminhada para chegar à casa de outras pessoas. Além do serviço da lavoura, não havia muito para fazer por ali. Cuidar dos poucos animais criados no local era uma das raras opções para converter o trabalho quase em lazer, uma vez que esta tarefa era menos estática do que lidar com a terra e seus produtos. Assim, era difícil encontrar diferença entre os dias da semana, uma vez que o nome rotina era uma palavra quase desconhecida, quase estrangeira.
Seu pai tentara em vão buscar a energia elétrica para sua casa, mas isso não dependia só dele, dependia de uma expansão que demorava a chegar, num lugar tão afastado e tão pouco habitado. Também não fazia tanto esforço assim. Era agricultor desde criança, não sabia ler e por pouco não conseguia assinar o nome completo. Bisneto de portugueses que desbravaram a região cortando o mato com facão e produzindo tijolos de barro, não conhecia outro lugar senão aquele mesmo. Não fazia questão de lâmpadas em sua casa, estando perfeitamente habituado á luz das velas. Casara ainda muito jovem, desposando uma índia destribalizada de uma antiga tribo dissolvida pela ação colonizadora que remontava a uns duzentos anos antes de seu nascimento. A bonita mulher de negros cabelos longos conservava uma ou outra tradição de seu povo de origem, o que refletiu na escolha do nome da filha. Trabalhava na roça junto ao marido desde que resolveram permanecer lado a lado.
 Nos primeiros anos de sua existência, Diacyra acompanhava sem problemas ou questionamentos o ritmo que lhe era imposto. Mas, como o passar do tempo, foi observando as fotografias dos poucos livros da escola rural que frequentava, seu único contato possível com o resto do mundo. As fotos mudaram seus pensamentos, converteram resignação em paixão, conformismo em curiosidade, imobilismo em idéias. Passou a desejar sensações diferentes através daquelas imagens. Algo passou a incomodá-la de tanto permanecer no mesmo lugar, sem contato com outras realidades, com outras pessoas. Queria estar fora de seu lugar, que não fora escolhido por ela mesma, que na verdade fora determinado por circunstâncias da vida. Queria percorrer paisagens diferentes além daquela que já havia decorado, detalhe por detalhe.
Diacyra permanecia sozinha quase todas as tardes na casa, enquanto seus pais trabalhavam na lavoura. Tudo o que ouvia era o som do vento soprando as folhas das árvores, provocando um som muito alto durante horas, não oferecendo opção para os seus ouvidos. Na verdade, o vento espancava as folhas de modo violento, um vento quente e sem tréguas que nascia quando passava das duas horas da tarde, após horas de calor intenso que gerava a sensação de um forno. O som do vento junto às folhas a incomodava brutalmente. Os pássaros também faziam parte da sinfonia, uma vez que cantavam rotineiramente. Sim, para eles não existiam dias ruins para se cantar, simplesmente cantavam. O mato crescia em volta da casa desordenadamente, e, quando estava por cortar, conferia à moradia um aspecto de abandono de muitos anos, associado à pintura branca marcada pela terra e notadamente descascada. No alpendre da moradia, a solidão era interrompida vez ou outra por alguma galinha desgarrada das outras, se bem que isso já era considerado parte do conjunto da monotonia em seu cotidiano. Não havia nada para se fazer, nada para causar distração. Ela sabia que, infelizmente, era só mais uma tarde e seu destino era esperar mais uma vez que a solidão arrastasse seus neurônios para lugar nenhum.
Confinada aos limites daquela parte do município onde morava desde o seu nascimento, pouco se atrevia a sair daqueles metros quadrados sozinha. Mais do que não conhecer outros lugares, o que a incomodava terrivelmente era aquela solidão durante horas extenuantes, que dilatava suas idéias mais apavorantes. Fazia parte da sua educação e de todas as outras pessoas do lugar as histórias fantásticas em torno de um caminho de terra, uma estradinha que conduzia à outra parte da miúda cidade. Eram histórias aterrorizantes, que ela se esforçava para esquecer. Quando não conseguia, elaborava justificativas para acreditar que tratavam - se de histórias vulgares inventadas por mentes desocupadas.
_Essas coisas não existem! Povo besta!
Contavam na região que neste caminho era possível encontrar pessoas mortas, absolutamente pálidas, que voltavam do outro mundo para falar com os vivos, balbuciando palavras ameaçadoras com seus lábios descoloridos. Muitos afirmavam ouvir sons de música sem que houvesse alguém ali para tocar um instrumento.  Apenas a lembrança desses relatos já congelava sua espinha, uma adrenalina percorria suas veias e causava espasmos nos músculos do seu corpo.
Mas aquela sensação de ser observada era diferente. Em outras tardes, já havia sentido o mesmo, mas nunca por tanto tempo. Uma tarde ou outra, olhando para as árvores de relance, sentia realmente que algo a espreitava, mas costumava se contentar com a própria explicação de que o vento nas folhas das árvores causava múltiplas impressões. Naquela tarde, olhou com mais atenção ainda do que costumava olhar. Quase em estado de pânico, vislumbrou entre a folhagem uma silueta negra que vestia um chapéu antigo, daqueles que fazem sobrar muito espaço entre a cabeça e o couro. Era um homem alto, andando em passos lentos e firmes. Simplesmente não acreditava no que estava vendo, não pensava mais, tampouco conseguia mover um músculo qualquer. Porém, ainda paralisada, quase morreu de susto quando viu seu pai chegando da roça, surgindo por entre as árvores. Emitiu um grito angustiado, grave, quase de morte.
_Não!
Jurava para si mesma que a figura que acabara de ver não era a do seu pai. As roupas, o chapéu, a altura, nada conferia com o seu progenitor, um homem de estatura mediana, que usava chapéu baixo e que voltava da roça com as roupas sujas de terra.
 _Não, não era ele! – dizia em pensamento, totalmente indignada pela traição de seus olhos. Havia outra pessoa em meio às folhas, não era possível, não estava louca, havia outro homem ali que não era seu pai.
Assustado com o grito de terror da filha, ainda todo sujo do trabalho com a terra, correu para dentro de casa sem retirar os calçados cheios de poeira, deixando o chão da cozinha marcado pelos seus passos. Sem entender o que se passava, questionou a filha, queria saber por que estava naquele estado, quem estava ali antes dele chegar.
_Filha, filha, o que foi que aconteceu?
 Mas ela não conseguia e também não queria explicar nada, não respondia uma palavra inteira, não conseguia articular nada em sua boca, que tremia ao ritmo do medo. Apenas murmurava, querendo encontrar relação entre as sílabas, para que fizessem sentido quando unidas.
_Mem, mem, to, ca, ca.
Tentativas frustradas, de sua boca as palavras saíam totalmente desconexas. Não demorou muito para que sua mãe também voltasse para casa. O cansaço e a fome eram tão grandes, que a mulher exausta não demonstrou muito interesse em conhecer os motivos que levaram a filha a gritar, negligenciando qualquer tipo de conversa que pudesse esclarecer o sofrimento de Diacyra. Contentou–se rapidamente com as palavras de seu marido, que procurou em vão qualquer coisa anormal na propriedade. Não havia nada que denotasse qualquer evento fora do comum em suas terras.
_ Num tem nada não mulher. Os bicho tão calmo, num tem nada fora do lugar.
Talvez por não conhecer nada diferente, jantaram como faziam todas as noites, como se nada houvesse acontecido. Após um banho demorado embaixo do cano que trazia água do poço, Diacyra conseguiu reunir forças para sentar – se à mesa junto aos pais e engolir uma pequena quantidade de comida, sem fome nem vontade de comer. Foi uma refeição silenciosa, entre três pessoas que repartiam comida, mas não tinham o que repartir em palavras. Não lhes causava espanto o cotidiano violentamente igual, igualmente ao dia anterior, a não ser pela imagem vislumbrada pela jovem, que não repercutiu nenhum comentário à mesa do jantar.  Como fazia todas as noites, Diacyra arrumou a cozinha e foi para o seu quarto, iluminando o corredor com a luz da vela equilibrada sobre um candelabro antigo. A luz inconstante da pequena chama produzia sombras disformes entre as paredes da casa, que deformavam o formato do seu corpo. Deitou o seu corpo cansado na cama de colchão rasgado pelo uso ininterrupto de tantos anos. Os sons da noite a incomodaram como nunca quando acomodou a cabeça cheia de dores no travesseiro manchado. As cigarras e todo o zumbido existente no meio do mato passaram a infernizar sua mente, que clamava pela chegada do sol. Sozinha, não enxergava nada após o apagar da vela. Não conseguia enxergar nem a sua cama, nem o guarda roupas antigo, únicos móveis que compunham o seu dormitório.
Mais de uma hora depois de deitada na escuridão total, finalmente conseguiu adormecer. Andava por uma cidade construída em pedras, de edifícios enormes e monumentos talhados que em nada lembravam as poucas construções que conhecia. Encontrava pelas ruas em que andava pessoas com os dentes para fora da boca, raivosas, com um olhar de cobrança eminente, o rosto franzido, longos braços e pernas em movimentos ameaçadores, com um alcance tão longo que não parecia humano.
_Terra... – diziam as criaturas.
 Desviava velozmente das figuras horríveis, sentindo o medo de ser tocada por mãos tão monstruosas. Quando não sabia mais como desviar daqueles seres, uma torrente de água invadiu o lugar, cobrindo os monumentos de pedra. A força da água jogou – a para longe, fazendo seu corpo flutuar na correnteza. Arrastada, esforçava – se para manter o rosto na superfície, até que foi agarrada por uma força que não conseguia enxergar. Tentava gritar, mas não conseguia, era como se a sua voz estivesse muda, sem poder algum de produzir som. Queria pedir socorro, gritar o mais alto possível, mas sentia sua garganta seca e inútil. Acordou engasgada pela secura, ouvindo o galo cantar e percebendo a mão do seu pai segurando seu braço. Levantou desnorteada, ainda sem entender muito bem o que estava acontecendo. Tremendo, foi até a cozinha para preparar o café. Seu estado emocional piorava ao pensar o que estava por vir. Passaria mais uma tarde sozinha e acuada naquela casa, sofrendo sem saber o que era pior: ficar lá fora olhando as árvores, ou permanecer dentro de casa imaginando o que estava acontecendo do lado de fora.
Antes que o sol nascesse, saía de casa junto com seus pais. Despediam – se ainda na estradinha. A alegria do casal era ver Diacyra sumir ao longe carregando os cadernos, enquanto eles carregavam pás e enxadas. Pensavam no quanto a vida da filha poderia ser diferente da vida deles, que trabalhavam de sol a sol com a enxada na mão.
Diacyra vivia os melhores momentos de seu dia na escola. Era uma construção precária, de paredes caiadas, uma sala de reboco ampliada. Apesar de possuir duas lâmpadas em funcionamento, em mais nada diferia de uma escola rural do século XIX. Os fios de eletricidade eram improvisadamente pendurados, na ausência de um forro que permitisse a instalação de algo mais pesado. Os antigos bancos de madeira denunciavam o abandono do local. Desconjuntados, eram lotados de pregos enferrujados, que muitas vezes despregavam – se de tão velhos, fazendo os alunos preferirem o chão ao risco de sofrerem uma queda durante uma distração. Em uma das paredes, havia uma extensão que um dia foi traçada com tinta preta, que cumpria o papel de lousa, absolutamente disforme. O banheiro ficava do lado de fora, formado por uma construção mais rústica ainda do que o resto da escola.
Era nesse ambiente que Diacyra passava quase todas as manhãs. Entretia-se com os livros amarelados, usados por muitos antes dela. As páginas desgastadas pelo tempo causavam fascínio pelas fotos que traziam impressas. Eram as únicas fotografias que conhecia.
_ Fotografia bonita... Olha quanto santo!... – falava alto enquanto observava uma fotografia de Congonhas do Campo.
 Virava cada página com imenso prazer, provocando uma sensação inigualável de euforia, diferente de todas as outras que conhecia. Conversava com outras pessoas de sua idade, que viviam em propriedades tão isoladas quanto a casa dela. As brincadeiras com seus colegas de escola eram a melhor coisa que ela tinha para aliviar sua mente. Esquecia de todos os seus medos. Esquecia das histórias fantásticas. Às vezes, algum colega de escola citava o assunto, o que bastava para que Diacyra prontamente mudasse o rumo da conversa. Quando o assunto surgia na boca de mais de um estudante, tornando – se impossível de censurar, Diacyra corria para fora da escola e entrava no banheiro, permanecendo tempo suficiente para que a conversa fosse encerrada.
A professora era a pessoa mais estudada que conhecia. Havia morado na capital, mas voltara para não abandonar a mãe que era viúva. Contava aos alunos que conhecia o mar, que era como um grande rio com ondas fortes e muito salgado. Ninguém ali entendia como a água poderia ser salgada, era muito estranho para todos. Ela falava de um jeito diferente de todas as outras pessoas daquela região. Ensinava dentro das possibilidades locais, sem recurso algum. Separava as turmas por idade pelos cantos da sala, todos no mesmo cômodo.
O pior momento para Diacyra era o momento de voltar para casa. Sentia toda vez como se o chão sumisse dos seus pés, seu corpo desmanchava em agonia e suas mãos voltavam a movimentar – se involuntariamente. Mas não havia outra saída, tinha que voltar para aquele mato, contrariada e sem opção. Pensava em tudo isso ao longo do caminho assombrado, na estradinha sinuosa. Desejou muitas vezes fugir, correr para longe, sair daquele lugar era o mais importante, a cada dia que passava a vontade ganhava mais força.
Mais uma vez retornou para casa e encontrou as árvores, os pássaros e aquele caminho que levava à outra parte daquilo que chamavam de vilarejo. Subitamente, a adrenalina chegava ao seu coração, corria seus braços e pernas, fazia tudo calar em seu ser. Entrou em casa e almoçou rapidamente, querendo terminar logo a refeição para dedicar toda a sua atenção ao movimento das árvores e aos sons que cercavam sua morada. Aos poucos, exercitava mentalmente a idéia de que estava quase maluca, quem sabe tão ridícula quanto os seus vizinhos que ela tanto criticava pelas histórias fantásticas.
_ Coisa da minha cabeça. Porcaria de idéia, num tem nada ali. – falava com firmeza, para ecoar sua voz e afastar seus pensamentos amedrontadores.
 Tratou de cuidar dos animais, buscando alívio em meio ao estrume das vacas. Observava minuto após minuto as vacas, as galinhas, cada pedaço de seus corpos, cada movimento irracional que produziam. Chegava a sentir felicidade entre os mugidos e cacarejos. Penteava os cavalos com prazer, como se fossem bonecas vivas. Quando suas pernas foram vencidas pelo cansaço, resolveu sentar no alpendre da casa, nos degraus que separavam a varanda da terra. Largou o corpo por alguns minutos, deixando o olhar vagar sem rumo pela folhagem das árvores, até que viu o seu pai chegando mais cedo da roça por entre a folhagem.
_Chegou cedo pai! Que é que aconteceu?
Chegou mudo, olhando para o chão, parecia absorver o solo. Curiosa por saber o motivo de seu retorno adiantado e ao mesmo tempo feliz pela sua presença, Diacyra correu em sua direção.
_ Por quê voltou mais cedo pai?
Quando parou perto dele é que percebeu um perfume forte, daqueles cujo aroma é difícil esquecer. Reparou que estava mais alto, que as roupas não eram sujas de terra, mas pretas de verdade. Na mão carregava um violino antigo, de cordas gastas, descascadas, e um arco aparentemente muito usado. Olhando para cima, Diacyra pode ver o rosto de um estranho de bigodes negros usando chapéu alto, o mesmo chapéu que visualizara no dia anterior, quando seu pai chegara da roça. Correu e gritou como uma louca, em pânico absoluto rumo à sua casa. Entrou furiosamente e trancou todas as portas e janelas. Na ânsia pelo fechamento da casa, batia as madeiras tão violentamente que por pouco não destruiu algumas janelas roídas pelo cupim. Abriu uma gaveta na cozinha com tanta força que derrubou todo seu conteúdo no chão. Escolheu quase que por instinto a faca mais afiada em meio aos outros talheres e trancou – se no quarto. Permaneceu ali por horas, quase catatônica, mas ainda esperando que aquele homem viesse ao seu encontro.
Quando seu pai finalmente entrou na casa, teve que arrombar a porta do quarto, única solução para adentrar o cômodo diante da recusa de sua filha para destrancar a fechadura. Quando seus pais finalmente a encontraram, ela ardia em febre, trêmula, coberta de suor frio. Desta vez sua mãe cobrou de si mesma outra atitude, passando a noite ao lado da filha que delirava em meio a soluços e espasmos.
_ Diacyra, minha filha, fale com sua mãe...

***

         Completaram – se seis meses que Diacyra e seus pais haviam mudado para o município vizinho, que dispunha de uma área urbana mais convincente. Percebendo a infelicidade da filha, o casal de agricultores vendeu as terras e partiu em busca de outra vida, mesmo que em condições limitadas.
Agora moravam em uma casa que estava no meio de outras. Diacyra não sofria mais com a solidão de antes, sempre estava acompanhada, não passava mais nenhuma tarde sozinha. Estudava em uma nova escola, fizera novos amigos, mas encontrou muitos assuntos em comum com os antigos: as histórias fantásticas.
Para aliviar seu trauma, seus pais consideraram que seria melhor para ela desconhecer o fato de que, naquela tarde confusa, um homem alto todo de preto passou ao longe, na beira do roçado, com um chapéu grande, carregando um violino de cordas visivelmente gastas. Ninguém vestia – se assim naquela região, tampouco usava aquele tipo de chapéu. Aquela figura causara estranhamento para todos que a viram.
Entre os novos amigos, Diacyra não ouvia mais a história do caminho tenebroso, mas de um grupo de ciganos que dançava na outra margem do rio e nunca foi alcançado. Todas as tentativas de aproximação eram frustradas, e o povo daquela cidade jurava que eram almas do além. Falavam também de uma civilização perdida, cujas ruínas estariam no fundo da barragem, construída no desfiladeiro do rio. Histórias sem nexo tão perdidas quanto aquele interior.
Finalmente chegou o dia do passeio. Diacyra esperou com grande ansiedade, pois era a primeira vez que participava desse tipo de coisa. Um velho ônibus angariado pela comunidade local garantia um passeio confortável para visitar a barragem, sem que andassem alguns quilômetros, além de percorrer o rio que constituía um dos limites naturais da cidade sem sofrer com o sol escaldante. Era algo inédito num lugar tão esquecido e remoto.
Brincou durante toda tarde com seus amigos. Correram, disseram coisas engraçadas, nadaram no braço de rio que escapara do progresso e tornara – se uma lagoa. Na barragem, aquela quantidade de água era fascinante, em um lugar tão quente.
Diacyra começou a enxergar algo de familiar naquilo tudo, mas não sabia dizer o quê. Olhava procurando, mas não encontrava aquilo que gerou em seu coração um instante de incômodo em meio a tantas alegrias. Percebeu que conhecia aquelas pedras do rio, com inscrições desconhecidas e formatos angustiantes. Estremeceu por um momento, estabelecendo conexões entre seus piores pesadelos e as histórias que acabara de ouvir.
Aliviada por entrar no ônibus, tentava não pensar em coisas para as quais não tivesse resposta. Não foi difícil distrair – se, a paisagem era muito bonita na estrada que ladeava o rio. O sol começava a baixar, conferindo ao céu o velho tom de fim da tarde.
Cansada, assim como os seus amigos, sentou – se no banco e deixou o corpo largado. Relaxou e deixou seu olhar perdido na outra margem do rio. Encontrou por acaso um grupo de ciganos, dançando e tocando livremente. Entre eles, um homem que Diacyra prontamente reconheceu. Alto, de roupas pretas, bigodes negros e chapéu grande olhou para ela, sorrindo maliciosamente.




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